5° CONTINGENTE - SD.VALDEMAR FRANCO
01 de setembro de 2008 | N° 15713Alerta
CARTAS DO FRONT 2
A lata mágica do tempo
No segundo dia da série, você
conhecerá a história de dois gaúchos enviados para uma missão de paz no Oriente
Médio. Um viveu uma grande aventura, o outro foi envolvido pela guerra. Ambos
perpetuaram suas histórias em cartas.
É em uma pequena caixa de biscoitos que o zelador Valdemar Franco, 70 anos,
guarda as relíquias daquela que considera a sua maior aventura de vida: integrar
uma missão de paz no Oriente Médio. Cartas, fotos e outros objetos o ajudam a
fazer uma viagem ao passado.
No dia-a-dia, Valdemar cumpre sua jornada de trabalho como zelador em um prédio
do centro da capital. Mas, vez que outra, quando abre a lata de biscoitos, volta
a ser o jovem que, aos 21 anos, decidiu encarar o desafio de conhecer – e
proteger – um mundo à parte na estreita Faixa de Gaza.
A embalagem guardada com carinho foi presente da mãe, Alzira Alves Franco. Pouco
antes de morrer, há dois anos, ela entregou ao filho toda a correspondência que
recebeu enquanto Valdemar esteve no Batalhão de Suez, entre abril de 1959 e
agosto de 1960. Faz parte deste tesouro, por exemplo, a carta escrita dentro do
navio Ary Parreiras, que levou o 5º contingente do batalhão à Faixa de Gaza. A
viagem demorou mais de um mês. Foi o tempo que o jovem aventureiro deu para a
mãe se acostumar com a idéia de ter um filho na guerra, em uma missão de paz:
– Quando terminei o quartel aqui no 18º Regimento de Infantaria, apareceu o
voluntariado para o batalhão, e eu fui. Ela só ficou sabendo quando eu já estava
longe daqui. Dizem que desmaiou.
Ouça trechos das cartas de João Carlos Martins
Com o filho em terras distantes, coube à mãe se conformar
e esperar pelas cartas. Em uma correspondência de abril de 1959, Valdemar contou
sobre o trajeto de ida:
“Depois de 18 horas de viagem, tornamos a ver um pedaço do torrão nacional:
Fernando de Noronha (...) Durante cerca de 80 minutos podíamos vê-lo; ao menos
de longe é bonito.”
Dona Alzira já deveria ter se acostumado. Afinal, dos oito filhos, Valdemar foi
o único que, nas palavras dele, “se desmembrou da família e foi embora de casa”.
Aos 12 anos saiu da terra natal, Santa Cruz do Sul, para trabalhar com a
agricultura. De lavoura em lavoura foi para Rio Pardo e de lá para Porto Alegre,
onde acabou servindo ao Exército. No quartel, aos 21 anos, foi parar em terrenos
bem mais pedregosos.
– Eu não tinha idéia do que ia encontrar por lá, estava indo cego. E fui vivendo
a vida conforme ela ia se desenrolando – afirma.
O desenrolar da missão incluía patrulhas e guardas em postos de observação:
– Éramos uma muralha invisível. Eram três patrulhas, dia e noite, circulando no
deserto. A gente ia de jipe para os postos de observação e ficava lá quatro
horas.
Em uma carta de maio de 1959, o gaúcho dá detalhes do acampamento e do trabalho:
“Do dia 23 ao dia 27 estivemos em barracas no QG do batalhão brasileiro, em
Rafah (...) Dia 27, nossa companhia foi tomar seu posto no “front”. Coube-me
ficar no PC da Cia, (...) e fica em Rafah Camp.”
Os soldados brasileiros tinham contato direto com a população local. Em uma das
cartas, escrita em 21 de junho de 1959, Valdemar conta sobre a situação de
pobreza da comunidade local:
“Tenho visto criancinhas magras, sujas, de olhinhos tristes, chegarem na beira
da cerca, quando se vai pôr fora o resto da marmita, dizerem: ‘Mister! Mister!’
Estendem uma latinha suja em um tom de voz que é uma súplica desesperada! (...)
Falta-lhes água, comida, terra que produza e o direito de sair daqui .”
Com um contato tão próximo, os brasileiros foram se forçando a aprender um pouco
o árabe – e também um pouco da língua falada pelos militares de outros países
que integravam a missão.
– Primeiro, era com gestos, depois foi se pegando alguma palavra. Eu aprendi
também um pouco de inglês, francês, árabe... Coisinha assim para se manter de pé
– lembra o o ex-militar.
No período em que Valdemar esteve na missão no Oriente Médio, a rotina era
semelhante à do quartel no Rio Grande do Sul. Com uma diferença: a temperatura.
De dia, os termômetros marcavam 45ºC. Por isso, na hora do almoço, era “uma mão
para comer e outra para se abanar”. A paisagem que ele estava acostumado a ver
nos campos do Estado também era muito diferente. Em carta escrita em maio de
1959, o gaúcho fala um pouco do cenário que encontrou pelo caminho:
“Por quase toda a extensão vista durante a viagem, aproximadamente sete horas,
só se vê areia. Em alguns tratos de terra se vêem escassas gramíneas, alguns
bosques de coqueiros e muita areia cultivada.”
Acostumado às lidas no campo, Valdemar se aventurou até mesmo com o arado na
Faixa de Gaza. Mas via de regra, quando não estavam a serviço, os boinas azuis
arrumavam diferentes maneiras para passar o tempo. Sessões de cinema – com
direito a filmes americanos – jogo de bilhar e, é claro, uma boa partida de
futebol estavam entre as distrações favoritas dos soldados.
Outro momento esperado com ansiedade era o da entrega da correspondência. E
Valdemar, embora afirme que não sentia saudades – porque via na missão “uma
aventura” –, deixa escapar o sentimento, em um trecho de uma carta de maio de
1959. A mensagem, mais uma que sai de sua caixa de biscoitos 49 anos depois,
revela a importância daquele pequeno pedaço de papel:
“Nem podem imaginar com que expectativa ouve-se o chamado de nomes para a
entrega das cartas. Mas, até agora, só recebi uma. Esta carta muito me
contentou, porém, peço encarecidamente que escrevam seguido.”
Quando escrevia para a mãe, o gaúcho gostava de falar do presente, do que via,
do que assistia dos beduínos, daquela população, e da viagem em si – raramente
trazia à tona algum problema ou perigo. Em uma única correspondência, porém,
transparecia tristeza. Ele revela que aquele foi o período em que esteve doente
– contraíra tuberculose.
Este capítulo, o ex-militar prefere esquecer. Para o soldado, a missão marcou
pelo aprendizado e pelo que pôde ensinar. Foi, enfim, mais do que uma aventura
no deserto. Foi parte fundamental de um pedaço de sua vida, cujos detalhes
voltam com cores a sua mente toda vez que ele abre a lata de biscoitos.
A UNEF
United Nations Emergency Force (Unef) – Força de Emergência das Nações Unidas –
I foi o nome dado à primeira missão de paz estabelecida pelas Nações Unidas, da
qual fez parte o Batalhão de Suez. O objetivo era estabelecer a segurança e
supervisionar o cessar-fogo entre as forças egípcias e israelenses depois da
Guerra do Suez. A Unef se estendeu de novembro de 1956 a junho de 1967.
SUEZ, A GUERRA
Foi deflagrada em 1956, quando o Canal de Suez foi nacionalizado pelo Egito.
Apoiados por franceses e britânicos, os israelenses conquistam a zona do Canal e
a península de Sinai. Mais tarde, cedendo à pressão americana e da URSS, Israel,
Grã-Bretanha e França devolvem os territórios – e o Egito fica com o compromisso
de manter o canal aberto à navegação internacional.
SUEZ, O BATALHÃO
Batalhão de Suez foi o nome dado ao grupamento do Exército brasileiro enviado
para integrar a Unef. Em 10 anos, cerca de 6,3 mil brasileiros foram mandados à
Faixa de Gaza, em 20 contingentes.
ATUALIDADE
de "theojr@terra.com.br" <theojr@terra.com.br>
data 14/09/2008 21:06
assunto Mensagem de um amigo ZEROHORA.com
Zero Hora.com